sexta-feira, 3 de julho de 2009
QUEM???
*QUEM É LOUCO, AFINAL ???*(Rubem Alves)“Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental.Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveriaser um especialista no assunto.E eu também pensei.Tanto que aceitei.Mas foi só parar para pensar para me arrepender.Percebi que nada sabia.Eu me explico.Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, dentro do meuponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujoslivros e obras são alimento para a minha alma.Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles,Maiakovski.E logo me assustei.Nietzsche ficou louco.Fernando Pessoa era dado à bebida.Van Gogh matou-se.Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve:não suportava mais viver com tanta angústia.Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica.Maiakovski suicidou-se.Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para osvivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.Mas será que tinham saúde mental?Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, previsíveis,sempre iguais, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas ascoisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo queo corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado;nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar fazer o quefez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme)ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensaro que nunca pensou.Pensar é uma coisa muito perigosa....Não, saúde mental elas não tinham.Eram lúcidas demais para isso.Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata.Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental.Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos aque teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa.Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse estresse oudepressão.Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindosorrisos e certezas.Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por issoapresso-me aos devidos esclarecimentos.Nós somos muito parecidos com computadores.O funcionamento dos computadores, como todos sabem, requer a interação deduas partes.Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra sedenomina software, "equipamento macio".O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho éfeito.O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formamos programas e são gravados nos disquetes.Nós também temos um hardware e um software.O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe osistema nervoso.O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados namemória.Do mesmo jeito, como nos computadores, o que fica na memória são símbolos,entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais" , e o programa maisimportante é a linguagem.Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos nosoftware.Nós também.Quando o nosso hardware fica louco faz-se necessário chamar psiquiatras eneurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o quese estragou.Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis nãofuncionam.Não se conserta um programa com chave de fenda.Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentrodele.Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos.Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale derecursos físicos para tal.Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas,palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas.Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem umapeculiaridade que o diferencia dos outros:o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que seu software produz.Pois não é isso que acontece conosco?Ouvimos uma música e choramos.Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado.Imagine um aparelho de som.Imagine que o toca-discos e os acessórios(o hardware)tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover.Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e searrebenta de emoção!Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio:a música que saía de seu software era tão bonita que seu hardware nãosuportou.Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de ofereceruma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental atéo fim dos seus dias.Opte por um software modesto.Evite as coisas belas e comoventes.A beleza é perigosa para o hardware.Cuidado com a música.Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados.Já o rock pode ser tomado à vontade.Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar.Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago?Os jornais têm o mesmo efeito.Devem ser lidos diariamente.Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e carasdiferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisasiguais.E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal.Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banalela é.E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você seaposentará para, só então, realizar os seus sonhos.Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá seesquecido de como eles eram."
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